Caro diário de corridas,
Ainda te lembras de mim?
Depois de tanto tempo e tantas aventuras pelo meio regressei
á tua companhia para te relatar a minha 3ª participação na Ultra maratona
Atlântica.
Às 05:30h pontualmente estava a chegar para a identificação
e garantir a passagem do rio Sado. A viagem ainda nocturna numa madrugada
chuvosa e fria fez-se sem dificuldades e em poucos minutos estávamos a
desembarcar no cais de Tróia agora renovado. Sentia-se no ar um ambiente
estranhamente calmo entre os atletas que se reservavam a poucas falas, a
maioria caminha de forma calma e em silêncio, de olhos postos chão ora no céu.
Cruzam-se e sorriem mas o silêncio é dominador.
Embarcados no autocarro seguimos até Melides numa viagem de
mais 30 minutos para sul. Assim que chegámos começamos a ter consciência da prova,
o mar agitado e azul ao fundo diz-nos que é ali, dirijo-me para o restaurante
local onde provo um café e encontro amigos destas e de outras andanças.
Saio em direção á fila para levantar dorsais, 2 filas a da
direita indicava números do 1 ao 230 e a da esquerda 231 a 480. Verifico que
sou o 407 sem ser supersticioso faço a regra dos 9 ..podia ser pior!!
Recebo o envelope com o dorsal/chip, uma camisola técnica da
Asics alusiva á prova, uma manga da mesma marca, 1,5l de água, um gel, uma
barra e uma maça..tinha as mãos cheias. Do outro lado a sport cience oferecia isotónicos
e pedacinhos de barras e gomas.
Refugiei-me numa esplanada e comecei a preparar o material.
Caras mais ou menos conhecidas iam cruzando por mim, os quase 500 atletas
inscritos anunciavam a excelente comunicação que a marca U.M.A e a C.M Grândola têm feito em provas e
imprensa. Eram 08:30H e estava pronto, comecei a descer em direção á praia,
por todo lado se viam atletas, uns isolados a olhar o horizonte, outros
sentados, a alongar ou deitados com as pernas elevadas, cada um á sua maneira
tentava ocupar a cabeça e tentar concentrar-se na prova. Sempre tive má relação
com os speakers não sei porquê mas acho-os enfadonhos e chatos como a potassa
este não era excepção de graçola fácil e parva lá ia entretendo, a organização
anunciou que se iria realizar um briefing pelo que solicitava a presença dos
atletas na praia. Começamos a descer em direção ao pórtico da vitalis (leitura
chip) um dos patrocinadores da prova e em seguida ao pórtico principal da Asics
( partida) o campeonissímo Carlos Lopes é aplaudido por todos em reconhecimento
ao grande senhor do atletismo e padrinho da prova há muitos anos.
O tiro de partida foi dado pela presidente da edilidade que
com um excepcional manejo de armas de tiro por pouco ainda lá estaríamos se não
fosse a providencial ajuda do C. Lopes.
Partida !! Posiciono-me á direita da saída e procuro
rapidamente focar-me no estado da areia, vejo que a mesma está muito mexida e
levantada, a cada passada sinto a sapatilha desaparecer, sinto a areia grossa e
áspera friccionar-me o pé como uma lixa
Os atletas espalham-se em 2 corredores, enquanto uns optam
por correr junto á água outros mantêm-se na parte superior da duna, ao meio
apenas esporadicamente uns descem e outros sobrem , ninguém se entende, a
progressão é lenta e penosa, meto-me no rasto da moto 4 já o ano passado o
havia tentado e não é diferente, procuro terreno não pisado não dá, desço até á
água pensando que iria melhor nada disso areia muito grosa e empapada era como
um pântano, uma onda rebenta mesmo em cima dos atletas tudo molhado até aos joelhos. Não me enervo e até
agradeço a areia que estava na parte superior do rebordo saiu ou entrou mas não
me incomoda. Á minha frente vejo o Luís Parro que segue junto á água, como
sempre colo-me e sigo com ele, a dificuldade é enorme ao fim de 5.5k (praia da
aberta-a-nova) olho para trás e vejo uma multidão a caminhar desordeiramente
uns andam e outros correm mas todos devagar, sinto que se continuar assim esta
prova vai fazer muitas vitimas eu incluído, estava bem preparado mas nada me
preparara para aquilo..
Mentalmente faço contas e verifico que estou a atrasar-me
muito. Sinto as pernas pesadas e o gémeo da perna direita começa a reclamar..8 k estou a menos de 1/5
da distancia total. Mesmo assim reparo que não estou sozinho na dor mais de
metade está atrás de mim e tentam superar a dor com uma forte capacidade de
resiliência. O Luís Parro começa a ficar ligeiramente atrás e pede-me para
seguir..km 13 o terreno mantém a inclinação forte mas começo a sentir firmeza e
tracção será desta? Reparo que as regras não se aplicam a todos e uns seguem
junto á arriba á sombra e em terreno mais consistente, compreendo-os e quem sou
eu para os julgar.
km 14,5 nova passagem pelas velas ( que assinalam a cada
praia a distancia) é um ponto de controle que fazem em 5 praias e onde registam
os tempos e as passagens. O fotógrafo tenta obter a melhor foto enquanto passamos.
Eu já venho há muito com as sapatilhas na mão e continuaria assim até ao km
28.5.
Km 20 praia do carvalhal, oiço alguém chamar por mim.”
Jorge.” Olhei e vi o João Paulo Carvalho
- Como estás amigo? Estás bem? Tem sido duro?
Lá respondi que estava bem e que me sentia mt bem, apesar de
reconhecer que até aqui tinha sido duro. Mas estava mt bem e esperava que o
piso melhorasse pois que aumentar a cadencia de ritmo.
Informa-me que vou com quase 2.40h de prova aos 20 km …o que
dava uma media de 8 min/km ..e ainda faltam 23Km respondi!!
Mas sei como funciono, sentia-me com força e apenas faltavam
8 km e mais uns trocos até ao abastecimento da Comporta “ nessa altura calço os
sapatos” e dou o litro!!
Sinto que começo a ganhar força bebo um gel de maça e banana
por sinal mt bom e bebo á agua que
restava do bidon laranja. Porreiro vai já para o cinto é é menos uma coisa nas
mãos. Sinto que ganho terreno aproximo-me rapidamente e vou passando os da
frente, calma gere o esforço ainda faltam muitos km..
Curiosamente e para alegria de todos, começo a sentir que os
veraneantes aplaudem os ultras e começam a apoiar é mt bom receber este apoio
quando estamos no limite das nossas forças e apenas a cabeça nos impele para a
frente. Obrigado pessoal
Consigo chegar-me atrás de um duo e sigo com eles em
silencio, apenas recortado pelo som do mar e dos passos arrastados de um
deles..nesta fase vejo um senhor com uma geleira azul que lhes forneceu 2
garrafas de água..fiz que não vi ( não me interessa ) mais atletas á frente
para alcançar agora que faltam 5 km e pouco..sigo atrás de um mas parou de
repente e foi para dentro de água molhar-se até aos joelhos..sigo..é incrível a
capacidade que temos de nos abster de tudo o que nos rodeia e não pensarmos em
nada ..Apenas ouvia a minha respiração, a cadencia dos meus passos, mais nada
..ligo mp3 e a musica não vale nada ( a
pior da selecção foi a que me calhou ) quero lá saber , parar é que não paro.
Recomeçar custa muito mais.
Sinto que faltam 3-4 km há um recorte de uma pequena bacia
penso –“depois daquela curva já vejo melhor os prédios! chego lá e outra curva
enorme que se estendia a perder de vista novamente me veio á cabeça –“ agora é
que é , depois daquela curva já vejo melhor os prédios! Fim da curva ainda havia mais outras e a mesma
promessa, sinto-me muito bem, já que faltam não mais que 2 km vou tentar
acelerar, fixo um atleta de verde que se via que também queria vender cara a
sua participação e não se queria arrastar era longe talvez 300-400 m de distância
–“tem de ser vou apanhá-lo!” sinto que me aproximo muito rapidamente,
entretanto vou passando outros que iam no seu ritmo e ignoravam por completo
esta luta titânica que eu travava com a minha cabeça. Cheguei a uma zona em que
já se avistava um pórtico enorme azul da Asics a ladear a chegada dezenas e
dezenas de espectadores e atletas aplaudiam e encorajavam os mais atrasados o
atleta de verde sente a minha proximidade e reage na ultima centena de metros
..mas nada havia a fazer eu estava em cima e estava forte.. Queria cortar
aquela meta com determinação e força, queria mostrar àquelas areias e mar que
ainda não foi desta, ás provações a que me sujeitei que ainda é preciso mais
para me vergar e a mim próprio que sou capaz e quero continuar depois de um ano
de lesões e de muitas limitações.
Esta feita a Ultra maratona Atlântica de 2013 e enquanto me
dirijo para a sombra para beber e comer já estou com saudades do dia em que sai
de casa e me atrevi a desafiar a força das areias da costa Alentejana.
Mas depois fica um sentimento estranho e inexplicável
Pegamos nas coisas mochilas ás costas (depois da massagem) e
saímos de costas voltadas para aquele pórtico testemunha silenciosa que
presenciou a capacidade e o querer daqueles que passaram por baixo da sua
sombra. Apenas me voltei uma vez ao fim de alguns minutos para comtemplar e
quem sabe tentar preservar na minha memória um pouco mais do que aqui vivi e
daqui levo..
Depois de uma U.M.A jamais somos os mesmos…